Quando o meio ambiente passou a ocupar mais espaço nas agendas governamentais e na lista de preocupações das pessoas, algumas respostas surgiram para combater o aquecimento global e controlar a emissão de gases de efeito estufa. As ações dos Estados ocorreram “tanto pelos seus compromissos internacionais no âmbito de regime de mudança climática, estabelecido inicialmente pela Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática (1992), quanto pela sociedade civil, por meio de padrões privados”, descreve a tese de doutorado de Manuela Kirschner do Amaral, ganhadora do Grande Prêmio UnB de Tese 2015 Roque de Barros Laraia, que laureia o melhor trabalho na categoria Ciências Humanas, Linguística, Letras e Artes, Ciências Sociais.
A pesquisa Padrões Privados e outras fontes não tradicionais de Governança no âmbito dos Regimes de Mudança Climática e Multilateral de Comércio da OMC: Conflito ou Convergência? foi orientada pelo professor Eduardo Viola, do Instituto de Relações Internacionais (IREL) da Universidade de Brasília (UnB).
O interesse de Kirschner pelo tema surgiu ao longo do desenvolvimento de sua dissertação de mestrado, defendida na UnB em 2007. À época, a autora analisou medidas governamentais de proteção ao meio ambiente no contexto do regime da Organização Mundial do Comércio (OMC).
TESE – De um lado, observou-se o surgimento de leis e regulamentos dos Estados para reduzir as emissões. De outro, notou-se a ação de entidades privadas, lideradas “pelo mercado, muitas vezes, em cooperação com entes não estatais, na medida em que os consumidores passaram a demandar produtos ambientalmente sustentáveis”, explica o trabalho. Até aí, tudo bem. A questão é a proliferação de “normas, padrões e requisitos para a produção e a comercialização de produtos industrializados e agrícolas, os quais criam, muitas vezes, novos obstáculos ao fluxo de mercadorias”, nas palavras do estudo de Kirschner. "Um exemplo são os padrões privados para promover eficiência energética. Como são benéficos para o meio ambiente, são bons, são interessantes. Mas podem ser interpretados como protecionismo, porque são selos pagos e, muitas vezes, mais exigentes do que medidas governamentais para a proteção do meio ambiente. Além disso, existem diversos selos no mercado, o que pode demandar bastante do exportador que almeja acessar determinado mercado", explica.
O problema surge quando essas medidas, desenvolvidas por organismos não estatais, se transformam em obstáculos desnecessários e injustificados ao comércio internacional. Desta forma, podem ser entendidas como formas de protecionismo privado. A questão é que as regras multilaterais da OMC – que visam regular as relações comerciais – são aplicáveis apenas aos Estados membros. O que significa que não englobam os padrões propostos pelas instituições privadas ou ONGs. Na tese, Kirschner explica que “a fronteira entre medidas estatais e não estatais relacionadas ao aquecimento global nem sempre é evidente e demanda análise, já que as consequências no âmbito das regras da OMC serão diferentes, dependendo de quem tiver imposto medidas restritivas ao comércio: atores estatais ou não estatais”.
Ao analisar padrões privados e outras fontes não tradicionais de governança tanto no âmbito do regime de mudanças climáticas quanto no do regime multilateral de comércio, a pesquisadora ressalta: “minha tese é uma possibilidade para o tema, não uma resposta para o problema. Minha proposta era a de analisar se essas medidas seriam consistentes de acordo com a OMC". A pesquisadora construiu a tese em duas partes. Na primeira, procura responder à pergunta "haveria conflito de regime?". Na segunda, analisa se as medidas privadas podem ser tratadas no Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio.
CONCLUSÕES – A tese avalia, primeiramente, as situações em que há envolvimento dos Estados em esquemas de padronização privados. "Muitos casos envolvem os governos. Então, o Estado deve ser diretamente responsável pelas medidas e, ao atribuir responsabilidade a ele, você analisaria a conformidade com a OMC como se a medida privada fosse do governo. Se estiver em conformidade, tudo bem", comenta. "Se não, o Estado deve ser responsabilizado pela medida privada restritiva ao comércio e fazer as reparações devidas, caso não seja possível justificar esses medidas nas exceções previstas na OMC. Nesse caso, poderia haver um conflito de regimes”, continua.
Em um segundo cenário, Kirschner analisa casos em que não há envolvimento governamental. Neles, a autora aplica o que definiu como responsabilidade indireta do Estado, pois caberia a ele garantir que empresas em seu território cumprissem com o disposto nas regras da OMC, como o Acordo de Barreiras Técnicas da OMC (Acordo TBT) e o Código de Boas Práticas acordadas internacionalmente. Nesse sentido, o Acordo TBT determina que os Membros devem adotar as medidas razoáveis ao seu alcance para assegurar que entes não governamentais em seu território cumpram com o Código de Boas Práticas. A autora reconhece, contudo, que alguns termos constantes desse Acordo precisam ser esclarecidos, como “entes não governamentais” e “medidas razoáveis”. Até o momento não existe jurisprudência da OMC capaz de esclarecer tais termos.
Por fim, a autora sugere um ponto para reflexão: se as medidas privadas fossem capazes de caracterizar a emergência de um costume internacional (uma das fontes para a interpretação de tratados internacionais), poderiam ser outra forma de tornar as regras da OMC aplicáveis à governança privada. Afinal, a própria Organização prevê o recurso aos Princípios Gerais de Direito Internacional para interpretação. No entanto, um complicador para esta abordagem é reconhecida na própria tese, “como determinar a emergência e a prevalência de um costume?". Considerando que "costumes internacionais derivam de uma prática generalizada reconhecida como lei, os padrões privados poderiam ser entendidos como um processo informal e privado de construção do Direito?”. Fica a pergunta para estudos futuros.
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