Desenvolvida pela UnB com outras instituições, solução é de baixo custo, não tóxica e rápida na revelação de datilograma oculto em superfícies porosas

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O comprovante de extrato bancário, a conta de luz, uma nota de dinheiro ou uma simples folha de papel são exemplos de provas encontradas em cenas de investigação criminal que podem conter vestígios necessários para desvendar um delito. Uma nova tecnologia, fruto de pesquisa coordenada pela Universidade de Brasília, pode revolucionar a maneira como é feita a revelação de digitais ocultas nessas superfícies. Trata-se das nanopartículas de prata acetiladas à base da goma do cajueiro (ACG-AgNPs).

 

As nanopartículas foram obtidas a partir da associação da prata (metal com potencial revelador tradicionalmente conhecido) com a goma do cajueiro, que é originada de uma modificação química na resina da árvore – um líquido viscoso de cor amarelada, extraído do caule da planta. 

 

A tecnologia tem inúmeros benefícios em relação às soluções atualmente adotadas, como explica o docente José Roberto de Leite, um dos coordenadores do projeto pelo Núcleo de Pesquisa em Morfologia e Imunologia Aplicada (Nupmia) da Faculdade de Medicina da UnB. 

 

“É uma tecnologia obtida a partir de um produto natural muito abundante no Nordeste do país, de fácil aplicação, barata e sem toxicidade. Entre as soluções adotadas atualmente está o composto denominado ninidrina, que possui toxicidade aos usuários e precisa de condições especiais de laboratório, para além de ser importado e de ter alto custo”, compara o professor.

Foto: divulgação do projeto
A imagem mostra a estrutura molecular da goma do cajueiro antes e depois de ser acetilada (A), a goma de cajueiro em pó (B) e a solução de nanopartículas de prata acetiladas à base do polímero extraído do caule da árvore do caju (C). Imagem: Divulgação

 

Publicada na Environmental Nanotechnology, Monitoring & Management – revista internacional da área de nanotecnologia –, a pesquisa envolveu produção laboratorial compatível com os testes exigidos a nível acadêmico. “Agora, precisamos de recursos para produzir em escalonamento industrial e para testar uma amostra estatística maior, incluindo, por exemplo, digitais de crianças e idosos”, conta.

 

Segundo José Roberto Leite, essas etapas são necessárias para comprovar a viabilidade para uso protocolar na perícia criminal e na papiloscopia forense – ciência que trata da identificação humana por meio das papila dérmicas – no país.

 

COMO FUNCIONA  O primeiro passo da pesquisa foi isolar e modificar quimicamente a resina do cajueiro, obtendo-se o polímero natural conhecido como goma do cajueiro. Este foi associado à prata, formando nanopartículas de prata acetiladas à base da goma do cajueiro (ACG-AgNPs). 

 

O polímero tem a função de se ligar às substâncias deixadas pela impressão digital, como íons e gorduras. Já a prata atua na revelação da impressão digital, tornando esses vestígios visíveis a olho nu. 

 

“A resina sai do cajueiro na forma de um líquido altamente viscoso. Depois de processada para formar a goma do cajueiro, torna-se um pó branco, amarelado ou acastanhado, a depender da modificação química. O último passo é sua associação com a prata, resultando na solução líquida das nanopartículas de prata acetiladas à base da goma do cajueiro”, detalha Marcela Sampaio, perita criminal da Polícia Civil do Piauí e coautora da pesquisa no doutorado em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina do ABC (FMABC), em Santo André, São Paulo.

 

A perita realizou os estudos da nanopartícula no Núcleo de Pesquisa em Biodiversidade e Biotecnologia (Biotec) da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar), unidade que possui grande expertise em produtos naturais derivados do cajueiro.

 

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Para testar a eficácia do material na revelação das linhas de digital, foi adotado o seguinte protocolo: fragmentos de papel contendo impressões digitais ocultas foram imergidos, por cinco segundos, em suspensões líquidas das nanopartículas de prata acetiladas à base da goma do cajueiro. As imersões ocorreram em quatro momentos diferentes: imediatamente após a produção da impressão digital oculta (tempo 0) e após uma, seis e 24 horas da produção da digital. 

 

Após a etapa, as marcas da digital tornaram-se visíveis no fragmento de papel. O material foi fotografado com uso de uma câmera digital, para posterior análise por um especialista em impressão digital. 

 

O estudo testou três concentrações da goma do cajueiro acetilada: 0,5; 1,0 e 5,0 miligramas por mililitro. Todas as concentrações mostraram-se eficientes na revelação de linhas de impressão digital contidas nos resíduos do papel, sendo que o melhor desempenho das nanopartículas foi com a menor concentração, a de 0,5 miligramas por mililitro. 

Foto: divulgação do projeto
No início da pesquisa de doutorado, a perita criminal Marcela Sampaio chegou a estudar o potencial de substância da árvore de angico para a mesma finalidade. Entretanto, a goma do cajueiro foi escolhida para o estudo pelos vários benefícios encontrados. Foto: Divulgação

 

Para caracterizar as nanopartículas, foram utilizadas espectrometria ultravioleta visível, microscopia de força atômica e microscopia eletrônica de transmissão – que são técnicas apropriadas para estudar partículas tão minúsculas. Para se ter ideia de seu tamanho, deve-se pensar em uma partícula de um metro dividida em um bilhão de vezes. O objetivo da caracterização é analisar, por exemplo, o tamanho da partícula em suas diferentes concentrações e relacionar essa característica ao efeito obtido.

 

Também foram realizadas simulações computacionais para comprovar a eficácia do composto na revelação da impressão digital no papel. A ninidrina ainda foi utilizada em paralelo num estudo controle de comparação dos resultados.

 

DIFERENCIAL – Uma das motivações para a pesquisa foi preencher uma lacuna existente na área. “Os reveladores atuais aplicados a superfícies porosas (como papel ou madeira não tratada) ou não são muito eficientes, ou são caros, ou são tóxicos”, comenta Marcela Sampaio.  

 

Ela menciona propriedades da goma do cajueiro que a tornaram elegível para a pesquisa. “Ela é um polissacarídeo [carboidrato] semelhante à goma arábica, que possui muitas aplicações industriais. Também permite modificações químicas através de reações simples. No caso, testamos a goma acetilada e carboximetilada, o que foi excelente, visto que o composto adquire propriedades anfifílicas [que possui uma região solúvel em meio aquoso e outra não solúvel], permitindo a ligação aos componentes aquosos e oleosos presentes na impressão digital”, esclarece a perita criminal.

 

Outra vantagem apontada pelos pesquisadores é a abundância de cajueiros no Nordeste do país e o alto rendimento do produto obtido no processo de transformação da resina em goma. A tecnologia também se destaca pela rapidez no processo de revelação: enquanto as nanopartículas tornaram as linhas da impressão digital visíveis em apenas cinco segundos, o protocolo com ninidrina requer entre 24 e 48 horas.

Foto: divulgação do projeto
O professor José Roberto Leite (ao centro) e o papiloscopista Rodrigo de Barros (à direita) durante reunião com  
Marco Antônio Paulino, diretor da Divisão de Laboratórios do Instituto de Identificação da Polícia Civil do DF. Foto: Divulgação

 

PERÍCIA  Papiloscopista da Polícia Civil do Distrito Federal há 11 anos, Rodrigo Barros é coautor do estudo. Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Nanociência e Nanobiotecnologia (PPGNANO) do Instituto de Ciências Biológicas (IB) da UnB, ele é especialista no estudo de impressões digitais.

 

“Nas impressões digitais, encontramos componentes do suor. Entre os principais estão água, aminoácidos, proteínas e sais. Também existem alguns componentes sebáceos, como ácidos graxos, colesterol e um lipídio, que são impregnados nas digitais por tocarmos regiões do corpo como face e cabelos”, explica Rodrigo Barros.

 

O especialista destaca que, ao revelar uma impressão digital, “é preciso checar quão suficiente é a qualidade dessa revelação para os trabalhos de identificação”. Sobre o desempenho das nanopartículas obtidas da goma do cajueiro, ele garante que “a qualidade da revelação obtida no estudo é compatível com o desempenho do reagente atualmente adotado nos protocolos da polícia”.

 

Segundo o papiloscopista, a continuidade da pesquisa tende a otimizar seus achados. “Podemos testar diferentes pHs na aplicação dessa suspensão, outras condições de luminosidade e de temperatura. São todos parâmetros que podem influenciar na qualidade do resultado”, aponta.

 

As vantagens da tecnologia de rota verde frente às soluções atuais reforçam a importância de prosseguir com a pesquisa. “É um recurso que oferece vantagens para o operador e para o meio ambiente. Poderia substituir reagentes convencionais que usam solventes tóxicos”. Ele lembra que o trabalho de peritos envolve “o manuseio diário de grande quantidade de provas, tornando a toxicidade desses produtos uma preocupação real”.

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Equipe da Universidade do Porto e da empresa Bioprospectum, ambas em Portugal, integram a rede de parcerias da pesquisa, coordenada pela Universidade de Brasília. Foto: Divulgação

 

COOPERAÇÃO  O estudo reuniu pesquisadores e parcerias públicas e privadas do país e do exterior. Na área de nanotecnologia e microscopia avançada, houve colaboração da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP) e da empresa de base tecnológica Bioprospectum (ligada ao Parque Tecnológico da Universidade do Porto, UPTEC) ambas em Porto, Portugal. 

 

“Sem a parceria com Portugal não teríamos conseguido fazer a caracterização nanotecnológica, já que não temos alguns dos equipamentos no Brasil”, informa José Roberto Leite. Além dessas instituições, participaram do estudo a Polícia Civil do Piauí, o Instituto de Identificação da Polícia Civil do Distrito Federal, o Instituto Federal de São Paulo (IFSP) e a Universidade Estadual Paulista (Unesp).

 

“Este projeto possui relevância para a inovação e para a cadeia de produção acadêmica de tecnologia. Mostra a importância de se estudar, de forma sustentável, os produtos naturais que, para além de alimentos e medicamentos, podem ter uso em outros setores da sociedade”, ressalta.

 

O docente da UnB acrescenta que “a internacionalização e a troca de experiências entre alunos e pesquisadores de outros países são fundamentais para se mudar paradigmas de uma sociedade, e isso possui um bem imensurável para as futuras gerações”.

 

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